segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

pés nus

Um grosso livro a tira colo. Uma tarde a tira colo. Talvez o bar onde a leitura se dava fosse próximo do local de trabalho. Não havia bebida alcoólica. Um suco, talvez um café. Os pés esticados na cadeira da mesma mesa, só que ao lado e a calça dobrada de tal maneira que a canela ficasse exposta.

A leitura parecia ser prazerosa: atenta e vívida como a tarde que terminava. O sol ainda despontava. A leitura corria. Atenta e viva.

A chuva repentina vem, fecha-se o livro, fecha-se o tempo. Chuva grossa como o livro. Entrou nas dependências do bar com o livro e com os sapatos e meias. Procurou uma mesa num lugar afastado. Sentou-se. Chacoalhou-se tentando eliminar toda água que tinha recebido quando do trânsito para dentro. Fracasso. Todavia os pés continuam nus, o livro continua seco.

Passados quinze minutos chega uma senhora. Talvez dos seus sessenta anos, para mais, talvez. Senta-se na mesma mesa. O encara com sorriso. 

As páginas continuavam interessantes, o sorriso não foi correspondido. Um silêncio pairava entre os dois. A leitura não era mais a mesma. Muito menos a vontade de diálogo.

Ambos ficaram em silêncio. As letras pareciam embaralhar, os olhos começaram a voltar para parágrafos anteriores, voltavam, não voltavam. A senhora tentava uma conversa, nada de volta. O livro era insistentemente faiscado por visão nervosa. Era Crime e castigo, era Dostoievski. O livro estava bem claro, não os sentimentos.

A senhora tentou por vezes mexer num celular, talvez como a leitura tentava ocorrer com o moço. Os dedos começaram a mexer com mais intensidade, os pés continuam sem meias nem sapato. O conforto era desconfortável.

Parecia que alguém queria fazer as pazes. Parecia que alguém negava-lhe. Era castigo visível o que ocorria. Era crime o que a senhora sentia.

A leitura era torpe. Era falsa. Era qualquer coisa menos leitura. Por trinta minutos a leitura foi insistente e não chegou a lugar algum. A chuva parou assim como a insistência. A senhora se levantou, dizendo um tchau inútil, os pés fecharam os dedos, como uma criança fecha as mãos de raiva. Foi-se a chuva. Foi-se a senhora. Foi-se a presença. 

Passam-se dez minutos, o livro se fecha. Os pés, tensos, continuam mexendo cada um dos dedos, sem direção sem porquê. Os pés brancos estavam tensos. Era raiva pura, era leitura dura, era sentimento ruim.

Meias nos pés, chuva passada, pés úmidos de sentimentos. Era o fim do frescor da tarde. Era a lamúria do couro do sapato. Nenhum escritor acalmaria tanto aperto. Nenhuma dúvida seria sanada com as meias. Era o peso do corpo, peso de castigo, de crime silenciado.