sábado, 20 de agosto de 2016

Na janela

A cada momento que abre os olhos, jura pra qualquer santo que ele sumirá. Mas ele aparece. 

A cada virada de noite espera-se que o álcool não seja sorvido. Que seja uma trajetória do trabalho pra casa sem paradas em qualquer lugar. Mas os pés desobedecem.

A cada varrida, pensa-se o que quiser: ele chegará bêbado. Terá esquecido toda a compra na mesa do botequim, terá esquecido que um dia a amou. Que o trabalho não é sofrido tanto assim, que ela ama.

Ele chega ébrio. Torpe, tonto. Baforento e nervoso. Não é assim são. É homem quando são. Gente e pai quando são. A porta nem é trancada, evita arrebentar a porta do apartamento. Entra desgraçado. Entre o medo e a prisão. Entre o macho e a repressão. Entra nervoso. Sem motivo pra quem vê, grita como um bebê ressequido por uma mãe sem peito. Culpa a mãe de peitos murchos. Berra e a esculacha.

Ela já encosta a vassoura, olhar cansado e triste, parece que a agulha do disco volta sozinha pro início do disco. Espera-se que rapidamente o braço do toca-discos chegue ao final e pare de girar, mas ele volta. Volume baixo, volume alto, depende da quantidade da pinga do bar. Ela nem fala mais nada. Tapas na cara a todo momento, nem dor há. Nem vontade de ir-se embora tem. O disco da vida enroscou. Não avança. O dinheiro vem dele. Ela nem chora mais. O tapa vem dele. Ela nem sente mais. Empurra pra cama, o cadáver não morre. Levanta-se e dá um forte murro. Dói, quanto dói falar pra patroa no dia seguinte que caiu e bateu no pé da mesa. Mesa dolorida, cruel, sem cadeiras. Sem choro, sem reclamação, pede uma base emprestada pra vizinha pra poder trabalhar com a cara disfarçada. Não tem como disfarçar pra vizinha o ocorrido, nem lágrima, nem desespero. A vizinha grita com piedade, mal sabe ela o quanto de misericórdia clama aquele olhar sério e melancólico.

Ela se fecha no quarto. Tenta esconder com cada centímetro da mão o que ouve; o que houve. O que haverá. Destruições e gritos. Ela não tem o que fazer, já fazem com ela sem que saibam. Ela chora todas as vezes. Afoga-se em cada tentativa da mãe. Afunda a cada esbravejo do pai. Por dentro grita e chora. Olha pra fora da casa, se vê correndo, se vê pulando. Não consegue, não por não poder, mas por não conseguir reagir. Sussurra por dentro, cânticos, orações... não há santo que estanque a lágrima. 

Terno cinza, na janela aparece o homem de chapéu. Olha pela janela. Pequena alma, não consegue tirar os olhos daquele chapéu. seus olhos baixos, fixam-se no olhar da menina. Ela olha seriamente, presta atenção. Seus lábios não são vistos, mas dizem: Tua culpa. Ela engole secamente a saliva bruta: não entende. Aparece sorrateiramente, clama a culpa. Ela escuta, não aceita. Tua culpa. Quando a mãe consegue domar o leão, o velho do terno se vai. Ela tira as mãos do ouvido. Tudo some. Ela deita. Não consegue dormir. Tua culpa. Não consegue se levantar. E dorme. 

E lá pra calada da noite, acorda berrando, a mãe berra junto, o pai mumificado. "Dorme logo sua pirada! De novo isso? Dorme logo!". Não dorme. Não consegue, aperta o travesseiro, tenta segurar com as unhas o colchão rasgado de estar no chão. Olha pela janela de novo. Ele pode voltar. A resposta será a mesma. A infância não.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Dial

Primeiro ligava-se o aparelho. Esperava-se esquentar a válvula, o que não demorava. Ah, demorava sim. Eram segundos de atenção e susto: se o volume estivesse alto, todos ouviriam no pulo.

Esquentado o rádio, lá ia seu Tião como todo mundo o apelidara. Sebastião era longo demais, mais rápido era Tião. Mais atencioso e tenso.

Eram tempos complicados: ai daquele que desse um sinalzinho sequer de vermelhidão em casa - era motivo do Dops encostar nas portas. Eram tempos de um Estado Novo.

A Rádio era de Moscou. Rádio comunista: informações diretas do Kremlin. Stálin representava a nação. Enviavam informações mundo afora. Para o Brasil, o horário era a noite. E baixinho que não é pra todo mundo ouvir.

Tião tinha que ter calma. Sentava-se sorrateiramente na frente do rádio, abaixava o volume e tirava da rádio nacional. Lembro que ele corria pra números diferentes dos números do Brasil. A chiadeira era constante. Zunidos subiam e desciam, engrossavam e afinavam. Agudos e graves, precisos como agulhas.

Era momento de silenciar. O número era justo, mas não o que o rádio oferecia. Tião aproximava o ouvido dos sons do rádio, era certeiro: primeiro uma chiadeira alta, aguda, depois um silêncio. Era o nosso prelúdio. O polegar e o indicador agiam como uma navalha mais que milimétrica. Movia-se sem mover. Uma virada diferente por questão de uma risada e lá se ia o canal.

O silêncio era o anúncio do informativo: "Rádio de Moscou!" e ali começavam as informações, sempre com uma breve chamada do Hino da Internacional. Era misterioso. Era fantástico. Era amedrontador. Meus sete anos em arrepios noturnos. Era monumental.

Nos chamava sem que entendêssemos de comunismo ou de aliados. De guerra lembrávamos, nosso vizinho tinha ido e morrido. Mas de governo russo? Queríamos a tensão do baixar os volumes. O suor frio que conseguir a estação, de compreender chiados imprecisos. De captar e esperar. Conseguir. Tião conseguia. Seus dedos giravam magias precisas... como uma nota difícil de ser alcançada no violino. Conseguia.

O giro era incerto, mas preciso. O ouvido girava com os dedos. Os olhos não largavam os números... estava entre dois, onde? Dependia. E se alcançava. Tião respirava fundo quando alcançava o silêncio. Aguardava a chamada como se conquistasse o território alemão no toque de um dedo. E conquistava. Aquela precisão treinada e tênue era digna de espião. Um duplo espião: De dia "Rádio Nacional", de noite, as penumbras das comunas soviéticas.

Um espião que sofrera com o tempo, sucumbira as dores cardíacas. Um rádio que só ouvia as notícias da velha "Nacional". Com o tempo, nem Tião nem rádio.

São botões, de controle remoto. Na caixa televisão. Consigo hoje colocar em qualquer canal estrangeiro. Qualquer língua. Não tem mais graça.

Não há o que se procurar, a imprecisão era precisa. A tensão era vívida. Os dedos não procuram mais, não erram. Não há  aquela perfeição que só o humano Tião era capaz. Era dele a batuta do silêncio dos dedos. Do sorriso trêmulo. Do meu não entender dos vermelhos. Do baixo volume de sua bravura. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

De todos os tempos

Ju é descolada. É esperta. Prefere as melhores Baladas.

Ju organiza todas as melhores festas. Melhores amigos sempre procuram a Ju. A Ju é um exemplo a todos os amigos. Aliás, quem não está com a Ju, está fora do que há de Melhor.

Espera-se que a Ju seja bem resolvida consigo mesmo, que seja uma mulher de atitude, como se viesse de sua própria natureza. Veio do berço. Ego bem estruturado, superego e id controlados. Seus pais eram de atitude. Perfeitos.

Ju tem o melhor apartamento.  Mora em torno de poesias e versos. Violões e músicas, melodias e cânticos. Discos antigos, autores inovadores. Saraus. Reflexões.

Ju recebe milhares de juras de amor. Ju é o centro das atenções. Ju não tem tempo livre: sempre a procuram, sempre estão fazendo alguma coisa divertida. Ju pede paz quando pode, mas é impossível. Ju é muito, muito requisitada. Ju está ficando cansada, apesar de um Snapchat, facebook e instagram bem atualizados. Descolados.

Ju é a melhor Ju de todos os tempos. É cérebro, é sentimento, é emoção.

Todos as veem como uma detentora de um cetro. É poderosa.

A melhor Ju de todos os tempos não tem nada disso: ela tem um celular. Ela não é nada disso: se acabar a bateria do celular, Não há Ju. 

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Dós

Poucos dias para a apresentação. Partitura amassada: piano de teclas amarelas. As pretas apresentam uma pintura rachada, as do centro nem mais tinta possuem. Ressoam notas antigas, ressoam o esforço de um velho pianista.

"Dó, dó, dó... não, errei". Havia persistência. Havia foco: a apresentação.

O terno já estava separado. O piano continuava velho. Os dedos trêmulos. Insistia em não errar a nota: tocava tudo de novo. Intensamente, sentia-se que se sentia a música: fluía. até a parte fatídica. Maldito conjunto de "dós": não soam bem.

Volta tudo: os pés cansam-se nos pedais, mas não há outra tentativa: tenta-se. Até chegar nos "dós". Eles não fazem parte da letra. Não tem o porquê de estarem lá. Não fazem falta: deixam feia a música. "Dós" que machucam: não contemplam a beleza. Acabam com a melodia. Acabam com toda a veludez e profusão da música.

"Dós" que não tem significado: estão lá como uma folha velha numa árvore: melhor se caíssem, nada mais fariam pela árvore.

Janelas velhas, cortinas tão novas quanto as janelas. Uma casa escura, móveis antigos. Até parece uma casa a luz de velas, mas já havia a lâmpada fluorescente naquele lugar.
Velhos chinelos. Velhas panelas.

Dia seguinte, senta-se novamente: um suor escorre pela coluna... os "dós" chegarão. Deixa fluir. Os dedos não querem ir, mas não há volta... os "dós". E... foram tocados. A música continuou, o pensamento fluía como quem não concordasse, mas quem somos nós para discordar de clássicos músicos?

Ao terminar a música, com toda intensidade possível, fora interrompido o silêncio final por um aplauso. Era um único sujeito: pro lado de fora dos portões, pro lado de fora das cortinas, pro lado de fora da janela.

Aplaudia, gritava, berrava: o pianista não entendia. Correu pra janela, arrastando os chinelos no taco de madeira. Olhava, puxando a cortina para o lado. Um pouco apenas.

Era um homem: uma pessoa qualquer, um transeunte, parado. Aplaudia. Parara naquele momento: observara talvez os vinte minutos pelos quais passava a música. Parecia um bobo, pois aplaudia solitariamente para uma casa. Um gesto aleatório.

E foi embora. Nunca mais se viu tal figura. Nunca mais se ouviu os aplausos. Os "dós" tocaram, mesmo sendo uma nota boba. Os aplausos não voltaram.

O pianista olhara para suas chinelas. Tiras fétidas de couro gasto. Poderiam ser outras.

domingo, 12 de junho de 2016

Ninho

O barulho de serras, máquinas: começa às oito. Mas os pássaros não tem relógio. Os pássaros seguem a luz. E seguem suas necessidades.

Ia o bem-te-vi na sua procura constante por pequenos galhos. É época de procriação, sua companheira está pra botar. Segue o bem-te-vi a procurar pequenos galhos. Canta pra todo mundo ouvir "to aqui! não me atrapalha"! Seguia procurando, olhar atento.

Chegou bem pertinho de um galpão. Uma antiga serralheria. Nunca fora ali, tinha medo do barulho, mas não custaria dar uma espiada por lá. Desceu: O barulho era intenso. Marteladas e faíscas por todo o canto. Um cheiro esquisito: nada natural.

No canto de uma máquina a girar, o bem-te-vi viu um curioso monte. Uma montanha de fiapos de metal. Nunca tinha visto aquilo, era brilhante, era um amontoado. tinha cara de ninho. Podia fazer ninho. Bicou e pegou um fiapo pro ninho.

Subiu. foi até á árvore escolhida pelo casal e pôs o primeiro pedaço. Ficou até mole de início, mas depois deu certo parou onde precisava parar. e seguiu adiante. Ia e voltava na árvore, Ia e voltava no monte metálico. Montava.

Depois de alguns dias, a façanha estava completa: um ninho cinza brilhante, cinza metal, cinza ninho. Apesar de sua fêmea nunca ter visto um design daquele, achou criativo.

Sentou. Sentou e de imediato deu um salto: fora pinicada. Havia partes pontiagudas, havia partes cortantes. Se assustara: voou imediatamente, cantou alto "não dá aqui não! aqui não!". O macho mas do que rapidamente, tentou se justificar, pensou rápido. "A paina da paineira. É época: é macia. Vai resolver." E voou com painas até seu ninho. Bateu as asas até a sua esposa, mostrava seu pedido de desculpas.
Afofou: ficou confortável. Era como se sentar numa cama de pregos, coberta por um manto. Dava pra sentar. Estava agradável.

E eclodiu o singelo ovo. Uma cabecinha muito se mexia e muito atentava a mãe que ali estava. O novo chegara e precisava ser alimentado. Voam os pais a caça de comida. Cansa o filhote a se debater. 

Uma chuva forte atrapalhava o voo: ficava difícil assim continuar voando. Era melhor dar uma pausa. Era melhor pararem um pouco. Voltar pro ninho era sábio: A chuva também atingia o filhote.

A água afundara a paina. O metal se revelou improrrogável a cria.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Santo Reis

     Interior é aquele lugar que o povo da cidade grande sabe que existe, mas só sabe. Pisar não pisa, porque é longe demais. Mas gosta de pisar de vez em quando pra falar que visitou suas belezas. Mas volta pra tigela de cimento rápido. E gosta de mostrar na televisão. E deixa seu próprio lixo pra trás.

   - Um, dois, me ouve Juca? Um, dois...

     Assim ia Maria Eduarda, botas novas e e roupa cara. E seu câmera a acompanhar. Ali aconteceria a folia de Santo Reis. Aconteceria ou acontecerá, é um dia antes do Santo Reis. Mas a produção entrou em contato com o chefe dos tocadores para que fizessem uma mostra de como era a festa um dia antes, devido a agenda apertada, e que isso deveria se passar no programa vespertino no dia seguinte, ainda. O chefe aceitou e avisou um por um. Rumo a cada uma das casas, pediu a colaboração de membro a membro. 
    É dia de glória, é dia de discórdia. Lá foram os foliões todos vestidos. Chamaram as mães, chamaram a parentaiada, chamaram os vizinhos, os animais. A poeira já ia se avolumando: o povo ia chegando cada vez mais.
    Maria eduarda já estava rodeada. Repleta de gente. Curiosa, essa gente nunca vira uma câmera de perto. Televisão sim, esse que é o zóio dozoutro, todo mundo conhecia. Mas Maria Eduarda? Ao vivo?
    Maria Eduarda estava lá pra registrar a folia de Santo Reis. Cobrir cada passo, cada um dos movimentos. O estandarte entrando nas casas, os foliões comendo e agradecendo os reis. Os aplausos, a fé, a paixão. Maria Eduarda estava com sua roupa impagável. Temia que a poeira manchasse sua roupa. Mas a poeira é inevitável.

    -Vamos então pessoal?Um, dois e três! Hoje na folia de Santo Reis no interior de...

   Lá começou Maria Eduarda. Mais que rapidamente começou todos os foliões uma cantiga. Uma reza-cantiga. Um louvor, do século XIX. Uma história. Uma tradição, Todos pulavam empenhados em representar forçosamente o santo. Cada gota de suor era equivalente a um pecado a menos. Cada gota do penado suor era o mundo a ser ganhado. Mas o casaco e Maria Eduarda, o medo da poeira estava ainda grande.
    Entraram no total em 5 casas. Fazem o bairro todo, daria na verdade mais do que isso. Mas continuavam, era em rede nacional. Pulavam, olhavam pra Juca e pra câmera. Pulavam. Levantavam poeira-alegria. Afastavam o medo. Cantavam. Comiam e ajoelhavam. Oravam. Os santos todos ouviam. Cantavam.
    Os dedos tremulavam por entre as cordas, rompiam o alvoroço. Mulheres gritavam salves, rojões espalhavam o aviso. Santo Reis tá forte! Santo Reis trouxe presentes e a presença de um Deus que veio nos olhar! Ora! Ora! Comemora! Pula!
    Completaram a jornada. Santo Reis se fez jorrar por entre os membros. 
    Maria Eduarda sorriu satisfeita, exceto pelo seu casaco. Juntara o microfone e o fio, entrou com Juca no carro oficial da emissora e partiu. 
    Levou o Santo Reis.
    No dia seguinte, todos estavam cansados: esperavam pelo Santo Reis do seu vilarejo. Famílias se aglomeravam por entre as televisões de algumas casas. Quem saiu? Quem apareceu?
    O chefe prometeu, ia começar o Santo Reis depois do programa vespertino. Todos animados: pelo programa.
     Trinta segundos: esse foi o tempo de glória, ascensão das almas e louvor àqueles que vieram presentear a Jesus. Apareceu um rosto ou outro, a surpresa foi imensa. Aplaudiam: os donos dos televisores pediam silêncio. Imediatamente atendidos.
     Trinta segundos: cada um catou seu chapéu e foi pra casa. A comemoração ocorreu. Santo Reis foi louvado.
     Santo Reis trouxera alguns presentes: microfone, um casaco caro e uma câmera. Santo Reis levou-os de volta: os reis eram possessivos. Santo Reis levantou poeira um dia antes e pouco se importou com tudo isso: os trinta segundos promoveram Maria Eduarda e seu fino traje. Santo Reis virou ladrão?
     Os trinta segundos trouxeram a preguiça para cada um dos cantores, violeiros, sanfoneiros e cozinheiras. Ano que vem quem sabe né? Esse ano já foi. Essa gente das capital sabe mesmo deixar lixo espalhado.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Vermelho

È uma simples cor como qualquer outra. Está em tudo quanto é lugar. Está em tudo quanto é símbolo. Está na História. Está no futuro. Está na política e está em todos os lugares.

Está na bandeira socialista da antiga União Soviética. Está na bandeira da nem um pouco socialista China. Acompanha a cruz de Hitler - dava aquele realce. Esteve na bandeira da Alemanha Oriental - da Ocidental também. Está na bandeira dos Estados Unidos. Esteve na bandeira dos Confederados. Está na bandeira da capitalíssima Suíça. Está na bandeira do Estado de São Paulo. Está na bandeira da cidade de Marília. E de outros tantos países. E de outros estados. E um bom tanto de cidades.

Está na cor da pasta vegetal do indígena, unhas sujas de urucum. Está nos campos, nas caixas da colheita de tomate e pimentão. Boa parte das pinturas rupestres eram feitas desta cor. Aparece no crepúsculo. Aparece na aurora.

Está nos molhos de macarrão. Em sopas. No rótulo de um refrigerante de cola. Numa marca de cerveja.  No batom. A cor do pecado, dos vestidos, dos tangos. Do flamenco. Do time da Internacional. Do Barcelona. Na cor daquele endinheirado banco espanhol, que quase afundou. Na cor da bandeira daqueles que afundam, dos mergulhadores.

O sangue de Cristo. A vestimenta de monges Hinayana. Das estolas de determinadas cerimônias. Nas paredes de alguns templos maçônicos. Na rosa. No cravo. Na cor carnal.

A cor da vergonha dos rostos. Da alegria dos mesmos. Da beleza das bochechas. No sorriso de uma criança. Na caneta da professora. Nos olhos ardentes, sorridentes. Nos olhos de erva.

Diante disso tudo, de tantas terras, de tantos odores e situações históricas, só um significado?

Não seria a cor viva dos países capitalistas? Dos antigos socialistas? Da cor da bandeira dos nazistas! Do sangue do trabalhador, ou daquele que trabalhou sua morte por toda humanidade que o selecionou como ladrão? Não está mais na eucaristia?

A cor da água de Pilatos era vermelha? Como ficavam o fundo das valas dos antigos judeus? E das valas dos atuais sírios expulsos? A chibata no lombo dos escravos? O avental dos médicos em cirurgia?

Uma cor, vários significados.

Um uso em voga: a brutalidade e a ignorância nomeados como política - todos que usam viraram comunistas aos olhos hipócritas. Canalhices gratuítas. Voltemos para nossas escolas.


segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Sentados

De um em um sentam-se ao chão. viram para o lado do sol. As crianças seguem as mulheres, que sentam-se ao centro do grande círculo. Pacientemente conseguem olhar para cada uma das árvores que os circundam. Aves voam baixo, anunciando um fim próximo.

A matriarca da oca olha de longe. Acende a fogueira para que a caça que está por chegar possa ser cozida. Mas observa tanto quanto as mulheres. Abana o fogo com uma mão e no esquecimento experiente, olha com toda profundeza dos tempos. O olhar penetrante, recolhe cada uma das lágrimas de um tempo incontável. É tempo de escuridão. É tempo de observação. Cada abanada aquece mais a lenha. Cada abanada aquece mais a esteira. A fumaça passa por entre o telhado de palha. Calmamente, passa.Tão calmo fecham-se os olhos. Mareiam de solidão e felicidade. Já sabem o que virá pela frente.

Os homens chegam e deixam cada uma das caças ao lado do fogo. Vão se silenciando conforme observam as mulheres. A matriarca pede silêncio e abana os caçadores: é tempo de sentar.

Sentam-se os homens, ao lado de cada uma de suas esposas. Outros sentam-se juntos, e viram-se na mesma direção. As crianças brincam, correm e de tempo em tempo sentam-se ao lado de suas amas. Mamam silenciosamente. Aprendem o infinito: olham para a mesma direção, coçam os olhos das sujeiras. É tempo do coração em remanso. Do quase-dormir, da boca que cai da teta.

Cores múltiplas surgem: tons de amarelos-vermelhos, laranjas sem fim. Azuis-pretos, misturas de combinações, mistura de gorjeios. O estalar da lenha dá sinal de um bom fogo. A caça pode ser preparada, mas não é tempo.

Quanto mais abaixa-se o disco solar, mais cada um dos membros observam. Cada piscada taciturna pode ser uma cor a menos a embriagar-se. Cerram os olhos para poder observar mais, o amarelo vivo torna-se laranja. O vermelho dá sua última linha, o verde da floresta ganha trevas. A explosão de cores vira uma imensidão de um não. Some.

Finda-se o pôr-do-sol. Finda-se cada uma das alegrias daquele dia. Do tinir das facas na macaxeira. Das crianças correndo. Da destreza do olhar ante as folhas: a caça voa-pula. A flecha é certeira. O ânimo é vivo.

A matriarca pisca lentamente por uma última vez, com o peito repleto de robustez e força. Ebriamente sai do torpor. Sorri com o canto da boca, como quem tem certeza do porvir.  O fogo vibra. Já pode sapecar a caça.

É tempo de levantar.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Nuvens III

Talvez nem todos um dia viram ou verão uma nuvem por cima. Essa possibilidade é fruto de um voo... O avião atinge a imensas alturas com o objetivo de obter altas velocidades, menos interferências de animais. Fora isso, olhar pela janela de um avião quando ele está sobre a camada de nuvens nos estranha.

Nos estranha pois as nuvens tornam-se um ar imenso. Vão longe, formam ondas longínquas, que passam de nosso horizonte. Vão e voam longe.

Formam montanhas. De uma imensidão de calmaria emergem erupções silenciosas e constantes, como uma ebulição de um imenso caldeirão, como um amontoado de cera de uma vela. Mas estão longe. Uma efervescência que vira um espetáculo. Do avião não sentimos esse frio calor: apenas imaginamos.

Um mar acima do mar: ali não se nada. Se conspira. Se contempla, a cada surgimento de uma de seus formatos percebe-se o quanto que o gigante dali não passa. Tem seus limites. Tem suas fraquezas. Ali termina sua robustez. A nave costura suas partes como uma  fina agulha ultrapassa um acolchoado de lã.

O ser humano conseguiu fazer uma máquina para ver o que víamos só debaixo. Compreendemos sua vulnerabilidade. Conseguimos chegar além das temperanças. Ultrapassamos o que imaginávamos ser infinito. E nessa infinitude, a pujança está em nós. Superamos as nuvens.  

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Melhor não olhar pra ele

Pobre é a alma do psicólogo. Não diria que ele é pobre em si, mas por carregar uma sina muito bem conhecida por todos esses profissionais.
Mal sabe tal profissional da psiquê, mas ele é um mágico. Tem a capacidade de ver a alma da pessoa, de reconhecer cada falha ali plantada. De saber da mãe e do pai, de saber quando se mente, de se saber o que se tem em mente. Num só olhar. Numa respirada mais alta. Num dedinho do pé esquerdo que move o tênis, fatigado a se mover à esquerda.
Pobre. Pobre por não ser reconhecido por mais uma alma entre tantas. Poderia sentar-se normalmente em qualquer que seja a beira de bar, qualquer que seja o passatempo: falou que é psicólogo, vira alvo.
Alvo de consulta gratuíta, alvo de amedrontamentos. "Melhor não olhar para ele, vai que ele descobre algo sobre mim!". Um pobre estudioso da alma humana vira adivinho. Juiz. Moralista. Supostamente sabe o certo e o errado quando de fato isso é o serviço do impostor.
Mal sabem as bocas que quando abrem a boca em temerárias palavras em espadas em riste contra o psicólogo, o fazem inutilmente. O pobre é um ser humano que vaga como qualquer outra. Que age como qualquer outra. Ah sim, há aqueles que se aproveitem da situação, de um título honorífico que o colocaria nos mais altos dos pódios do Olimpo, mas esses dão-me preguiça. Esses tem a arte de afastar. Se não afastam por impor o saber do mundo com verbetes enfadonhos, afastam quando se conhece mais o sujeito e percebe que aquele que de Olimpo nem bem tem as poeiras que recobrem suas sobrancelhas. Farsas. 
A paciência de um óculos carcomido com o tempo, de um olhar penetrante em busca de uma companhia, de uma conversa de tempos rasgados, são jogados ao vento pela persecutoriedade alheia. O psicólogo é um ser humano mortal comum que muito tem a fazer quando está a trabalho. Fora dele como qualquer outra gente, faz o que lhe é necessário. Respirar, defecar, dormir são alguns exemplos. Pode olhar para ele.

PS: Se porventura as pessoas temem encontrar-se em local comum com um psicólogo, por que não temem um encontro na mesa de um bar com um proctologista?

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Nuvens II

De longe parecem tão fofas e tão belas. Com o fundo azul seus formatos ficam destacados.
Esparsas parecem fracas, breves manchas espalhadas ao longo de uma imensidão azul. Lentas, carregadas pelo vento. Conforme o tempo. Conforme o sopro.
Olhamos de cima pra baixo. Olhamos como uma criança observa seus pais, gigantes que ocupam o universo. Vemos o lado de baixo de cada um das nuvens. Tanto lentas quando rápidas, como fofas e algodoadas, vemos de baixo.
E se víssemos na mesma altura, no limiar que a faz ser nuvem?
As nuvens são escuras. Brancas, Espalham-se concentradas. Fortes, muitas  delas tenebrosas. A alva formação de águas escurece. Torna-se cinza. Em relação ao horizonte, se olharmos para a parte de baixo da nuvem, forma uma imensidão de cinzas. De potencial de chuva. De tempestade. 
De baixo tão apaixonante, ao mesmo nível tão espessa.
As nuvens acabam escondendo sua força total. De baixo nada disso aparece. No mesmo nível elas concebem uma beleza inquietante. Tão avolumadas e dispersas, nunca demonstram turbulências. Em pé de igualdade, raios e trovões escondem-se para um momento oportuno.
Na graciosidade das nuvens esconde-se o tumulto das tempestades. Só não queremos vê-las.