domingo, 29 de janeiro de 2017

Rádio no ombro

Tão comum passarmos por qualquer rua e vermos pessoas transitando por entre tantos cruzamentos, absortas em seus fones de ouvidos. Estão por toda parte. Estão nas academias, estão nas pistas de corrida, estão nas horas de distração. Não seria diferente: trabalhamos tanto, procuramos um momento de distração. Precisamos e necessitamos algo que torne tantos dias duros em dias amenos.

Lembremos por exemplo dos anos 80, em que algumas pessoas escolhiam seu melhor set de músicas, gravavam-nas em fitas e saíam pelas ruas com seus rádios no ombro. Escutavam sua música e chamava a atenção para quem estivesse por perto. Dançar junto fazia parte. Era parte de uma cultura em que algo que fazia bem ao sujeito ( ou não, dada as proporções auditivas) propriamente deveria ser ouvido pra outras pessoas. "Ouço e ouvem: eu decido por onde se passar".

Os fones de ouvido, ao longo do tempo foram reduzindo de tamanho e sua utilização acabou sendo cada vez mais frequente e popular. Nos últimos anos percebemos que os fones voltaram a tamanhos significativos, não apenas para o ouvido. Multicolorido ou monocromático, entretêm o ouvinte.

O que diferencia um do outro? No primeiro caso, o ouvinte pode tirar o rádio do ombro, aliás, interage auditivamente com as pessoas ao seu redor. O ambiente onde o sujeito estaria proporcionava uma comunicação ( desde que se abaixasse o volume, venhamos e convenhamos). No segundo caso, o sujeito ouve sozinho. As borrachas que entram no orifício auditivo vedam quase que hermeticamente, impossibilitando ouvir o seu espaço.

Trocando em miúdos, estamos ficando um pouco mais individualistas. Não queremos ouvir o que vem de fora, não aceitamos, temos preferido o isolamento. Distração? Sim, ela existe, porém não podemos deixar de observar que não se ouve o lado de fora. Tendo a pensar que cada vez mais fazemos barulho para não nos importunarmos com o que nos machuca. Isolamo-nos. Vedamo-nos numa música ensurdecedora e prazerosa. Não damos espaço para escutar o que nos fere do exterior e aumentamos o volume freneticamente para não escutarmos o que nosso pre-consciente deixa escapar das escuridões inconscientes.

Estamos nos tornando uma sociedade que foge da realidade. Ora, se realidade fosse algo apenas benéfico, não teríamos mecanismos de defesa do ego. Porém a realidade nos fere.

Estamos nos tornando uma sociedade que foge da realidade por não ter conteúdo suficiente para compreender nossos problemas. O mundo externo e interno são facas afiadas demais.

Quem dera pudéssemos dar a chance de ouvir o mundo externo e interno? Compreender o que vem e o que fica, o que usar ou não usar no nosso mundo psiquê. Ter essa luz seria de extrema importância para a autocompreensão. Música alta não faz esquecer, só ensurdece um barulho mais forte, um conflito intrapsíquico de proporções incompreensíveis.

Nos isolamos: preferimos correr para dentro do útero materno e nada escutar. Ali permanecer, longe dos cacos de vidros que a vida nos oferece. Quem dera pudéssemos voltar um pouquinho no tempo e botar os rádios de volta nos ombros: o que havia de estrelismo, havia também de contato com o mundo.