sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Raiz de dois

Tantos cálculos passaram pela minha vida. Números, divisões, somas e somatórias. Por mais incógnitas que eu tenha passado, x e y não eram pra mim mistério, mas sempre buscávamos o que eles eram. Não havia problemas com letras do fim do alfabeto.

Me incomodavam os resultados em raiz. Quando o número tinha raiz, seguia o cálculo para um número inteiro. Então o símbolo da raiz ali desaparecia e seguia para o resultado. E quando o número não possuía raiz quadrada? Ali ficava o numero sozinho ou muitas vezes junto a um outro número: raiz quadrada de dois, três raiz de dois, cinco raiz de três. A raiz fechava o número. 

Não havia um número inteiro que auxiliasse tal número. Assim ele ficava, dependendo do símbolo da raiz. Muitos professores indagavam que sim, os números possuíam raízes mas entravam nas casas depois da vírgula rumo ao infinito. Diziam que era só bater o número na calculadora e ali se desenvolveria a sua raiz. Com muitos números depois da vírgula.

Facilitava a vida não ter que mexer no vespeiro que vem depois da vírgula. Era dados estrondosos e detalhados, números que chegariam ao além. Mas que não deixariam de representar um número.
 
Passar o ensino médio sem saber pra onde iria esse número era estranho. O que ele poderia compor poderia ser próprio dele, havia sim algo além de sua raiz quadrada. Ali interrompíamos. Raiz de dois. Raiz de três. 

Nos cálculos universitários, a raiz é desmembrada, precisa sair de sua confortável cobertura: ganha casas depois da vírgula e calcula-se livremente com outras situações. Ganha significado, ganha vida, apesar de não ser número inteiro. Mas se aproxima. Nunca será inteiro, mas persiste em sua busca. Segue teu rumo ao infinito.

Buscamos raízes. Origens, significados, causas. Sabemos as consequências, mas somos resultado de nossa própria investigação, procuramos causas. Tolice seria imaginar que a raiz de dois seria um vírgula quatro um quatro e milhares de outros números que o seguem. São infinitos, mas procuram chegar a algum lugar. 

Procuramos lugares. Dar significados para onde estão nossos pés, compreender o presente, lançar olhares para o futuro. Somos talhados de presente, passado e futuro, estamos em constante desenvolvimento. Inexato. Complexo. Que não se chega ao fim.

Nossa vida aparenta muito o desenrolar de raízes: em busca de chegar em algo que seja perfeito, mas que não realmente seja. Mas tenta. Raízes vão para lugares que não sabemos. Mas vai, mesmo que não sendo inteiro. Mas vai mesmo que numa planta, para sustentar uma árvore inteira.

Precisa-se ir, mesmo sem fim. Nada nasceu para ser inteiro. Precisamos ir além da raiz quadrada de dois.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Sarahah´s: ontem e hoje

Em tempos não tão remotos, nas escolas era muito comum que no Ensino Fundamental II e no Ensino Médio os adolescentes criassem um caderno, devidamente preparado para que cada uma das suas páginas houvesse uma pergunta. Numeradas, cada pessoa que recebia o caderno responderia as perguntas conforme a ordem numérica em que foi deixado para ele. Seria necessário que o sujeito colocasse o seu nome no seu respectivo número para que as perguntas fossem identificadas em cada uma das perguntas ao longo das páginas. Chamava-se caderno de enquete.

Era um sistema eficiente de recolhimento de informações, tendo em vista que o questionário era longo e que as questões poderiam ter conteúdos íntimos. E o sujeito poderia responder e fingir seu nome: Ele teria que ter tempo paa responder cada uma das respostas, então ele poderia levar o caderno para fora da escola. E na mão de quem poderia cair? Não se sabe. 

Enfim, os adolescentes acabavam matando suas curiosidades intensas neste caderno.

Não é a adolescência a fase de grandes descobertas e questionamentos? Por que não propor que você conheça o outro e também possa ter um veículo pelo qual você também possa se conhecer por meio do outro?

A atualidade não mudou muito o esquema. É muito comum vermos questionamentos no facebook em que o sujeito pede para que seja comentado um "pontinho" (.) e muitas perguntas poderão ser respondidas de forma pública ou privada. Inclusive o teor das perguntas não mudaram desde o caderno de enquete: "o que você gosta ou não gosta em mim", "qual é o seu sonho", e assim por diante.

E essa mesma atualidade acabou gerando dois aplicativos sem qualquer tipo de questionamentos propostos. Há alguns anos atrás foi lançado o "Secret", onde as pessoas poderiam realizar qualquer tipo de comentário de forma anônima para as pessoas. Comentaria-se a respeito de alguém sem que fosse revelado. Deu dor de cabeça pois os comentários de conteúdo de bullying foi rapidamente disseminado. E temos neste ano, recentemente lançado o "sarahah", cujo propósito é o mesmo: ler comentários de anônimos a respeito de si mesmo. Público alvo: adolescente.

Resumindo: é o adolescente quem procura conhecer-se nesse mundo. Ora, é esta fase intermediária entre a infância e a fase adulta que se (acreditamos) constrói-se a autonomia. Assim, podemos perceber que desde tempos anteriores, conhecer-se e conhecer o outro é uma dádiva da adolescência:  desta forma consegue conceber a sua identidade no espaço onde ele vive. Sarahah e caderno de enquete então são formas pelas quais procura-se um lugar na sua identidade, a partir do olhar do outro.

É a juventude que procura delinear nas mais diversas formas sociais a finalização do seu próprio eu. Pensemos: os adolescentes vivem ( ou procuram) viver em grupos, onde os diálogos são ( assim espera-se) enriquecedores para uma compreensão sobre que fase é essa em que todos vivem. Há que se resolver conflitos próprios. Há que se ajudar o outro em seus conflitos. Este é só mais um meio pelo qual os adolescentes procuram estruturar-se em seu espaço. Saber secretamente a respeito de si. Poder falar a respeito do outro. 

Procura-se constantemente a realidade própria. Mas como não é de forma organizada, pode vir repleta de preconceitos e ataques. E o que era para ser um conhecimento a ser construído, passa a ser um veículo de destruição (lembrando que o caderno de enquete também era uma forma de ataque). Nada mais do que fundamental do que a presença dos pais em diálogos constantes para que cada um desses assuntos sejam debatidos em família e que prevenções possam ser realizadas nesse outro grupo, onde o adolescente também se questiona e também procura o lugar do seu eu. E onde também se constroem os limites.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Sem sorriso

Passamos por horas correndo o dedo por fotos em sites de redes sociais. Não podemos mentir, não são minutos. Tanto sorriso, tantas festas, a felicidade ultrapassa seus limites.

Até que eu abrisse uma das redes sociais e uma das pessoas ali expostas não postasse um sorriso sequer. Sem sorriso. Não estava séria, só. Estava brava, óculos escuros. Nada além de rugas laterais. Nada além de uma cara cotidiana para uma segunda feira matinal. 

Uma cara brava. Me senti no mínimo fora daquele espaço, não acreditei no que via. Um rosto bravo num mundo eletrônico de simpatia. Me senti impactado: algo estava errado. Por que não sorrir?

Há tempos uma foto não me chamava tanta a atenção. Quão xucro achei aquele momento dócil? Um corte naquilo que era comum: alguém não sorriu por um momento. Não haviam espaços demosntrados na foto de que outro sentimento poderia ser transmitido: um belo jardim? A big party? Família Reunida? Nope. Rua e uma cara de bravo.

Senti vontade de aplaudir aquela rigidez em foto. Um espaço democrático onde não sorrir é mortal. É ferir querer demonstrar feridas. Me feriu, pois foi basicamente realidade.

Aquela boca naquele dia resolveu contar muitas verdades sem que seu dono puxasse seus músculos da boca. Não recebeu muitas curtidas, sequer visitas. 

A verdade quando exposta, dói. Promove um estranhamento quase que coletivo, em que vivemos por querer mostrar ao mundo que somos invejáveis. Aliás, por que não pensar que o sujeito das redes sociais provoca a inveja por ele não querer ser o alvo da mesma? Esse pensamento não é original, há muitos estudiosos pensando nisso.

Aquele sorriso demonstrou que não temos nas redes sociais um espaço democrático. Se assim fosse, por que estranhei o não sorrir? Sei que estou envolto neste meio e sei que muitas pessoas estranham o que é diferente neste mesmo espaço eletrônico. Que democracia exige que se sorria a todo tempo? Aliás, por que cobramos tanto dos outros? O que não queremos enxergar no outro que seja na verdade nosso?

De tantas fotos, de tantas demonstrações, aquela imagem ganhou seu devido espaço. Pode ser uma imagem estranha em meio ao mundo positivo, mas pode ao menos lembrar-nos de que os anzóis que levantam nossos cantos da boca, são passíveis a ruptura. Sem belos jardins. Sem festas. Numa segunda-feira qualquer e sem graça, digno de qualquer sujeito vivo. 

segunda-feira, 1 de maio de 2017

A repetição do fracasso

Depois de tantas recomendações acerca da série "Thirteen Reasons why", série veiculada pela Netflix, comecei a perceber algo que todos já percebemos e as repetições permanecem.

A série gira em torno de uma garota que chegou ao suicídio, porém, antes de faze-lo, gravou uma série de fitas para que ela esclarecesse entre algumas pessoas o que a conduziu a tal ideia. Interessantemente, esse enredo é um livro com o qual não tive contato, todavia minha ideia perpassará por outro aspecto. Não falarei desse suicídio.

O suicídio que indico aqui é a proposta que eles tanto demonstram a tempos em filmes e livros. A estrutura educacional estadunidense que deixa com que as coisas aconteçam e as reações são paliativas e as consequências são árduas.

Na série acima citada, o autor deixa bem claro: garotos atletas ganham notoriedade (ganham concursos de fantasia sem qualquer criatividade) assim como as líderes de torcida: são classificados como populares e assim são aplaudidos constantemente. Os nerds ( ou quem não está entre eles) sempre estarão no alvo do ataque, serão considerados os "bobos" da situação - por não serem populares, sofrem a marginalização e se viram diante do sofrimento - criam grupos entre si, porém que idolatram o grupo popular. E na história da série, Hannah é uma dessas personagens marginalizadas que tenta frustradamente entrar no meio popular e acaba virando motivo de bullying permanente. 

Perceba que todas as vezes que o sistema educacional estadunidense for exposto, essa proposta de popularidade/ marginalização surgirá. Vejamos no caso do best-seller Extraordinário escrito por R.J.Palácio. Auggie (August Pullman), protagonista da história, passa por uma dificuldade em meio ao espaço educacional: entrar no ensino fundamental sem ser julgado pela sua aparência -uma deformidade facial. Vejamos um trecho do livro de R. J. Palacio, em que August Pullman tem a voz:
 
E ficar lá era horrível no começo. Cada aula nova era uma nova oportunidade de as crianças 'não olharem' para mim. Elas me espiavam por trás dos cadernos ou quando eu não estava olhando. Evitavam esbarrar em mim a qualquer custo, dando a volta e pegando o caminho mais longo, como se eu tivesse algum germe que elas pudessem pegar; como se meu rosto fosse contagioso. (PALACIO, p.68)

Ao longo da obra, August Pullman luta para se adaptar a realidade de ser constantemente observado e enojado numa escola cuja a listinha que corre entre os alunos é de quais são os grupos populares/ impopulares que existem e onde cada um provavelmente ele se encaixa para poder sobreviver. O desfecho não posso dizer aqui.

Nos dois casos, a tentativa de sobrevivência é forte. Recebe o aplauso o mais popular, recebe a atenção dos alunos o destaque em perfeição física. Me pergunto: onde estão as autoridades escolares que não percebem que essa estrutura não está correta? 

Por que observo medidas paliativas? Sim, rendem-se homenagens a Hannah, fazem palestras de conscientização, sim, Auggie passa a ser respeitado pelos alunos, mas a estrutura é mantida. Tiremos Auggie e Hannah de ambas as histórias e tudo prevalece em marginalizações. Os populares continarão sendo populares e as autoridades que compõem a estrutura educacional permanecerão deixando esse caminho ser trilhado sem qualquer problema.



O educar está pautado num convívio social duro e sanguessuga: há visivelmente o mais forte e o que sobra é todo um grupo que nada representa. E o que eles reproduzem artisticamente vem representando tudo isso como uma longa compulsão a repetição: a estrutura permanece a mesma, deixando de lado qualquer um que não seja "popular".

Enquanto esta estrutura popularizante, que reduz o sujeito a uma margem, digno a não ser visto ou valorizado, teremos Tiros em Columbine, crianças pensarão em uma alternativa de sobreviver por meio das panelinhas, outros verão na morte uma solução pro fim das chacotas e invasões de privacidades. A estrutura educacional estadunidense promovida pela produção cultural é insistente em dizer que muito do que há lá está errado e que nada tem sido feito para mudar. Seria muito difícil pra eles olharem que o educar deve ser para todos - a autonomia deve ser construída para todos e não para poucos? Que quem se destaca financeiramente e fisicamente são partes do todo e não o todo em si?

É culpa sim da estrutura educacional (que nada faz para se modificar em seu âmago) a construção do bullying.

domingo, 16 de abril de 2017

A rumba de Saraghina

Fazer um filme demanda tempo e paciência: um bom enredo, um elenco e uma direção significativa. Enredo? Esse foi o problema apresentado pelo filme 8 e 1/2, de Federico Fellini. Guido é um personagem que passa por um sério problema: escrever um roteiro de um filme. Para tanto, todas as suas paixões e desejos acabam aparecendo e virando motivos de lembrança - amalgamam-se em vários momentos, enquanto o fraquejar do protagonista é sentido a cada momento. Por que não um dos seus momentos de torpor não poderia ser sua adolescência?


Fellini teve a feliz ideia de fazer com que em uma das lembranças de Guido, houvesse um momento erotizado ( se comparado com os dias de hoje, é uma cena leve): A famosa cena da Rumba de Saraghina.



Neste momento, um grupo de jovens saem de um internato até a praia onde pagam para que Saraghina dance. Numa dança que descrevo como exótica, Saraghina encanta cada um dos meninos com um gingado peculiar e olhares misteriosos e penetrantes. O jogo de movimento e zoons realçam cada passo dessa dança.

Uma elaboração simples: uma mulher que sai de um bunker emerge para a dança: limpa seu rosto para ganhar vida em passos arenosos, em olhares felinos. Quais foram os efeitos especiais? A maquiagem? O jogo dos olhos? A areia chutada pela dançarina?

Segundo Hugh Gilmore em sua postagem acerca da descoberta de quem foi a misteriosa dançarina, Fellini a descobriu quando andava na rua. Aliás, curiosamente, a dançarina era uma cantora de ópera que foi convidada pessoalmente por Fellini para fazer o teste para o filme. Em outras partes do filme, Saraghina ganha voz e toma outras atitudes, porém a cena central são os 3 minutos de filme na beira da praia.

Uma cantora que resolve dançar. Uma cena que exigiu nove pessoas atuando. Percebe-se que não foi uma cena de milhares de câmeras; antes de qualquer coisa, uma cena com uma fotografia esplêndida. Maquiagem inigualável. Olhos penetrantes, olhares certeiros.
Não precisou de muito pra demonstrar como uma mulher enigmática conduziu ao êxtase os jovens estudantes. E tudo muito simples.

Saraghina hipnotiza os garotos no longa metragem e os cinéfilos da contemporaneidade: uma obra prima do cinema.

A marca de Fellini não eram os complexos efeitos especiais. Em seus filmes, a rudez das gravações eram perceptíveis a todo momento - e é ali onde vivia o requinte.

Numa rumba de três minutos, renderam quadris, olhos, pulos e tapas. Em preto e branco. Nove atores, numa praia ordinária e suja. Pode parecer muito elogio para uma cena só, mas vivemos um momento da cinematografia mundial em que cenas assim dificilmente poderão ser imitadas. Onde a simplicidade é motivo de vergonha e pouca atenção. Eddra Gale ficou imortalizada por uma simples e amadora dança. Federico Fellini, como um dos maiores cineastas do século XX, só premiado com o Óscar nos últimos anos de sua vida, tem uma série de filmes aclamados pelos cinéfilos mundo afora. Poucos ganham esse espaço. Fellini hoje é, em muitos momentos, sinônimo de intelectualidade cinematográfica.

Do simples emerge o extraordinário.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Aqui tá chovendo

Quando telefonamos a qualquer pessoa, as primeiras informações que tentamos levantar é a respeito da condição pessoal. Um famoso "como vai", "e a família", acabam virando frases cotidianas, que tentam demonstrar um mínimo de preocupação alheia. Porém, os nascidos do século XX presenciavam com frequência um outro tipo de preocupação: o clima.

Pode até parecer bobo da parte do sujeito, porém o clima do local onde o sujeito se encontra era um modo frequente de estar a par de possíveis problemas: "faz muito sol", "está muito calor ai", até que chegamos ao alvo desta discussão, que ficou famoso nos últimos tempos, " tá chovendo ai?".

Um áudio foi rapidamente disseminado por entre as mídias brasileiras, em que provavelmente uma idosa conversa com outra pessoa, iniciando a conversa pela frase "Tá chovendo ai, aqui ta chovendo!", logo após, a resposta que segue é "Ta chovendo, choveu a noite inteira e ainda tá chovendo". Ganhou espaço nos canais de televisão e nos canais do youtube. Ganhou notoriedade e espaço pra chacota: a pobre velhinha que queria puxar uma conversa, tornou-se motivo de piada.

O áudio é um tanto engraçado, porém prefiro ver um outro lado: que chuva é essa que ela tanto se preocupa?

Paro pra pensar e vejo que provavelmente ela tenha vivido em um espaço, em que a chuva poderia ser sinal de bons tempos: aquela que molha a terra, que faz germinar as sementes, que alivia a secura das plantas. Se fosse uma agricultora, seria um momento de alívio. Mesmo na condição de agricultura, um exagero de chuvas poderia acabar com a plantação pode ser também um sinal de perigo.

Todos sabem que dormir com chuva é algo extremamente hipnotizante. Dormimos com muito peso, satisfazemos nosso descanso. Pensando dentro dessa possibilidade, a chuva pode ser um tranquilizador, um fato que acalma, que age como um tranquilizante pra situação. Pode-se dormir tranquilamente, não tem-se a necessidade de se preocupar com os problemas que estão fora da casa. Como um momento de se resguardar.

A pobre idosa então, ao meu ver, preocuparia-se com 2 coisas: primeira, com um desejo de esperança e de preocupação naquilo que se produzirá; segunda, um desejo de tranquilidade, de calmaria, uma busca de paz.

Olhando desta maneira, vejo que de certa maneira, a velha senhora procurou uma alternativa para metaforicamente poder verbalizar a sua preocupação com o outro e assim também expor suas condições. "Aqui tenho a esperança de que minha produção venha a dar certo", ou "Aqui estou tranquila".

O áudio demonstra também a voz de um sujeito com sotaques sulistas, demonstrando que esta "velha do diabo" nada teria que ficar falando de chuva. Veja, ele também ganhou seu espaço: não consigo viver em calma, não é meu problema a tranquilidade ou os frutos alheios, não dou conta do que  outro tem a dizer.Como a representação de que a vida cotidiana afasta nossas condições de tranquilidade e boa colheita. Não há. Não produz. Não descansa.

Entre um caos e uma calmaria, essa senhora me ensinou que precisa chover mais por muitos lugares, que precisamos compreender que sim, ao chover, nos resguardamos, tornamo-nos mais reflexivos debaixo de nosso telhado. Precisamos pensar mais quais são os tipos de chuva que estão no nosso terreno, tendo em vista que conseguimos transformar uma chuva num tremendo de um temporal, talvez com furacões, talvez em conflitos pessoais.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

A culpa da semente

De mensagem a mensagem percebemos que nossa comunicação tem sido cada vez mais aprimorada. O que demorava dias, faz-se em segundos. Estamos num mundo cheio de expectativas e desejos. Mas podemos acreditar que tudo funciona neste modo?

Não. Nem tudo merece ou acontece diante de pressa. Acontece aos poucos, aprimora-se. Porém vivemos em uma situação em que acabamos transformando tudo num tipo só de resposta: imediatamente.

Lembro-me de um velho experimento que, com um pouco de algodão, um feijão e um copinho, fazíamos nascer um pequeno pé de feijão. Éramos pequenos agricultores. Era fantásticos. Mas não me lembro de ter tido a sorte de ter tido uma professora que replantasse a pequena muda ou que testasse o experimento com outro tipo de semente. Mas aprendi por conta que cada semente tem seu tempo de germinação.

Digamos que vivemos numa sociedade em que esperamos que valores e amores sejam necessariamente como um único tipo de semente: um pouco de água basta e lá surge de tudo. Acreditamos no potencial da semente, mas ela não é a planta em si.
 
Esperamos do outro que, aquilo que ele planta ou que plantamos na outra pessoa, de imediato transborde. Seria como se estivéssemos dizendo que a semente em si produz frutos. Não, não produz. Ela demora, caminha. Cada qual tem seu tipo de semente. Seu tempo de germinação, de eclosão.

Vemos dois tiques azuis no WhatsApp e cremos que houve uma leitura de imediato. A comunicação pode ser comparada a um feijão. Muitas vezes observamos que espera-se que o feijão produza ramas e vagens de imediato. Não, não faz isso. Leva ainda tempo.

Sabores, amores, valores. São sementes duras que necessitam de tempo, cautela e persistência. Planta-se e demora-se. Nutre-se de tempo em tempo. São sementes que não se pode regar demais, senão apodrece. Sem nutrição qualquer, morrem. Precisam de muita terra e  boa profundidade. E assim podem expor seu potencial.

Vivemos porém como se essa tão aprimorada semente germinasse de imediato.  Não, ela não produz frutos se antes não for planta, se antes não criar raiz. Sentimentos precisam ter raiz forte, doutra forma, rompem-se. Se se exige demais dos sentimentos, se a água demasiadamente rega a semente, apodrece. 

 A culpada é a semente, assim julga-se costumeiramente. Culpam-na como quem culpa o fato de não compreender a pressa do mundo. Culpam-na de ser ineficiente, ruim e pobre.

Precisamos reaprender a lidar com o ser humano. Compreender que cada um tem seu tempo e espaço e que  precisa ser nutrido nas devidas proporções. O mundo não é um mar de feijões em algodão. Temos araucárias, cedros, ipês. Cada qual deve ser cuidado conforme sua especificidade. O amar é a mesma coisa: é árvore robusta, cuja semente não gera frutos de imediato. Precisa ser árvore, precisa ter forte raízes, então produz.

Sentimentos não são rápidos, se compararmos a forma com a qual nos comunicamos na atualidade. Relacionamentos não são feijões de algodão. Precisamos retornar a pré escola, plantar o feijão, ver quanto tempo demora a virar um pé de feijão adulto, quanto tempo demora até dar o feijão. E experimentar outros tipos de sementes e plantas. E transformar as conclusões desses novos estudos para compreender como podemos realizar o contato social, respeitar os espaços e que o amor não pode ser arrancado de ninguém ou julgado como inexistente. A culpa não é da semente.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Rádio no ombro

Tão comum passarmos por qualquer rua e vermos pessoas transitando por entre tantos cruzamentos, absortas em seus fones de ouvidos. Estão por toda parte. Estão nas academias, estão nas pistas de corrida, estão nas horas de distração. Não seria diferente: trabalhamos tanto, procuramos um momento de distração. Precisamos e necessitamos algo que torne tantos dias duros em dias amenos.

Lembremos por exemplo dos anos 80, em que algumas pessoas escolhiam seu melhor set de músicas, gravavam-nas em fitas e saíam pelas ruas com seus rádios no ombro. Escutavam sua música e chamava a atenção para quem estivesse por perto. Dançar junto fazia parte. Era parte de uma cultura em que algo que fazia bem ao sujeito ( ou não, dada as proporções auditivas) propriamente deveria ser ouvido pra outras pessoas. "Ouço e ouvem: eu decido por onde se passar".

Os fones de ouvido, ao longo do tempo foram reduzindo de tamanho e sua utilização acabou sendo cada vez mais frequente e popular. Nos últimos anos percebemos que os fones voltaram a tamanhos significativos, não apenas para o ouvido. Multicolorido ou monocromático, entretêm o ouvinte.

O que diferencia um do outro? No primeiro caso, o ouvinte pode tirar o rádio do ombro, aliás, interage auditivamente com as pessoas ao seu redor. O ambiente onde o sujeito estaria proporcionava uma comunicação ( desde que se abaixasse o volume, venhamos e convenhamos). No segundo caso, o sujeito ouve sozinho. As borrachas que entram no orifício auditivo vedam quase que hermeticamente, impossibilitando ouvir o seu espaço.

Trocando em miúdos, estamos ficando um pouco mais individualistas. Não queremos ouvir o que vem de fora, não aceitamos, temos preferido o isolamento. Distração? Sim, ela existe, porém não podemos deixar de observar que não se ouve o lado de fora. Tendo a pensar que cada vez mais fazemos barulho para não nos importunarmos com o que nos machuca. Isolamo-nos. Vedamo-nos numa música ensurdecedora e prazerosa. Não damos espaço para escutar o que nos fere do exterior e aumentamos o volume freneticamente para não escutarmos o que nosso pre-consciente deixa escapar das escuridões inconscientes.

Estamos nos tornando uma sociedade que foge da realidade. Ora, se realidade fosse algo apenas benéfico, não teríamos mecanismos de defesa do ego. Porém a realidade nos fere.

Estamos nos tornando uma sociedade que foge da realidade por não ter conteúdo suficiente para compreender nossos problemas. O mundo externo e interno são facas afiadas demais.

Quem dera pudéssemos dar a chance de ouvir o mundo externo e interno? Compreender o que vem e o que fica, o que usar ou não usar no nosso mundo psiquê. Ter essa luz seria de extrema importância para a autocompreensão. Música alta não faz esquecer, só ensurdece um barulho mais forte, um conflito intrapsíquico de proporções incompreensíveis.

Nos isolamos: preferimos correr para dentro do útero materno e nada escutar. Ali permanecer, longe dos cacos de vidros que a vida nos oferece. Quem dera pudéssemos voltar um pouquinho no tempo e botar os rádios de volta nos ombros: o que havia de estrelismo, havia também de contato com o mundo.