sábado, 20 de agosto de 2016

Na janela

A cada momento que abre os olhos, jura pra qualquer santo que ele sumirá. Mas ele aparece. 

A cada virada de noite espera-se que o álcool não seja sorvido. Que seja uma trajetória do trabalho pra casa sem paradas em qualquer lugar. Mas os pés desobedecem.

A cada varrida, pensa-se o que quiser: ele chegará bêbado. Terá esquecido toda a compra na mesa do botequim, terá esquecido que um dia a amou. Que o trabalho não é sofrido tanto assim, que ela ama.

Ele chega ébrio. Torpe, tonto. Baforento e nervoso. Não é assim são. É homem quando são. Gente e pai quando são. A porta nem é trancada, evita arrebentar a porta do apartamento. Entra desgraçado. Entre o medo e a prisão. Entre o macho e a repressão. Entra nervoso. Sem motivo pra quem vê, grita como um bebê ressequido por uma mãe sem peito. Culpa a mãe de peitos murchos. Berra e a esculacha.

Ela já encosta a vassoura, olhar cansado e triste, parece que a agulha do disco volta sozinha pro início do disco. Espera-se que rapidamente o braço do toca-discos chegue ao final e pare de girar, mas ele volta. Volume baixo, volume alto, depende da quantidade da pinga do bar. Ela nem fala mais nada. Tapas na cara a todo momento, nem dor há. Nem vontade de ir-se embora tem. O disco da vida enroscou. Não avança. O dinheiro vem dele. Ela nem chora mais. O tapa vem dele. Ela nem sente mais. Empurra pra cama, o cadáver não morre. Levanta-se e dá um forte murro. Dói, quanto dói falar pra patroa no dia seguinte que caiu e bateu no pé da mesa. Mesa dolorida, cruel, sem cadeiras. Sem choro, sem reclamação, pede uma base emprestada pra vizinha pra poder trabalhar com a cara disfarçada. Não tem como disfarçar pra vizinha o ocorrido, nem lágrima, nem desespero. A vizinha grita com piedade, mal sabe ela o quanto de misericórdia clama aquele olhar sério e melancólico.

Ela se fecha no quarto. Tenta esconder com cada centímetro da mão o que ouve; o que houve. O que haverá. Destruições e gritos. Ela não tem o que fazer, já fazem com ela sem que saibam. Ela chora todas as vezes. Afoga-se em cada tentativa da mãe. Afunda a cada esbravejo do pai. Por dentro grita e chora. Olha pra fora da casa, se vê correndo, se vê pulando. Não consegue, não por não poder, mas por não conseguir reagir. Sussurra por dentro, cânticos, orações... não há santo que estanque a lágrima. 

Terno cinza, na janela aparece o homem de chapéu. Olha pela janela. Pequena alma, não consegue tirar os olhos daquele chapéu. seus olhos baixos, fixam-se no olhar da menina. Ela olha seriamente, presta atenção. Seus lábios não são vistos, mas dizem: Tua culpa. Ela engole secamente a saliva bruta: não entende. Aparece sorrateiramente, clama a culpa. Ela escuta, não aceita. Tua culpa. Quando a mãe consegue domar o leão, o velho do terno se vai. Ela tira as mãos do ouvido. Tudo some. Ela deita. Não consegue dormir. Tua culpa. Não consegue se levantar. E dorme. 

E lá pra calada da noite, acorda berrando, a mãe berra junto, o pai mumificado. "Dorme logo sua pirada! De novo isso? Dorme logo!". Não dorme. Não consegue, aperta o travesseiro, tenta segurar com as unhas o colchão rasgado de estar no chão. Olha pela janela de novo. Ele pode voltar. A resposta será a mesma. A infância não.