sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Mississipi Goddam

Cantar é uma tarefa que depende de uma gama de fatores. De dentro do sujeito, depende da vontade, das afinações e fisiologia, dos treinos e da colaboração das cordas vocais. De fora a motivação, o esforço e o apoio de parentes. Por que não falar das necessidades psíquicas? Sim, falamos para alguém de algo que é nosso com o canto.

Não diferente dessa situação, trago como um exemplo de alguém que se descreveu em cântico: Nina Simone. Convido você a conhecer um pouco mais da trajetória desse ícone da música americana neste site aqui. Após tal passeio, convido a uma reflexão.

A filha de Nina Simone, Lisa Simone Kelly, ao longo do documentário what happened, Nina Simone? afirmou que depois que ela escreveu e começou  a cantar a música Mississipi Goddam ( Assista o video abaixo), nunca mais sua mãe conseguiu retornar uma oitava anterior. Quanto a isso, elucubrarei alguns pensamentos.

Falemos da música: trata-se de uma canção em que a dificuldade de ser negro e os estados onde há a desvalorização social do negro ( onde são entoados nomes de estados onde o racismo é vivo até hoje). Esta música acabou se tornando um ícone da luta dos negros, mesmo porque goddam em traduções para o português se refere a um palavrão, o que era algo inimaginável para ser veiculado nos meios de comunicação. Mas foi veiculado e ganhou espaço. 

É crítica. É robusta e incisiva em delinear o sofrimento do negro.

Agora, da oitava: as oitavas anteriores referem-se a uma série de notas que são mais agudas em relação de onde estiver sendo tocada uma música. Assim, podemos dizer que depois de começar a cantar Mississipi Goddam, ela deixou de alcançar notas mais agudas. O que pode acontecer naturalmente entre os cantores com o passar do tempo.

Mas esta falha na voz não veio a toa, não no momento em que ela foi entoada. Nina Simone viveu sua infância e adolescência com temores a tudo que viria dos brancos. Ameaças constantes, o desrespeito e a impossibilidade de seguir carreira em bons centros de estudos ( por ser negra) deram a tonalidade da construção de sua carreira inicial. E de repente, a chance. Expor os problemas de vivência interna e externa.

Puxando a sardinha para a psicanálise, Nina Simone ao cantar a canção Mississipi Goddam se deu a oportunidade de vencer uma série de barreiras inconscientes, possíveis repressões que a impedisse de lutar contra a maré de opressões do seu cotidiano. O material reprimido foi exposto. Nina Simone, ao conseguir apenas sons mais graves, tornou-se adulta. A voz fina, representação da infância, foi abandonada. Ali agora, a conversa era outra. A voz era outra. A criança dependente e reprimida ganha força: segue para a autonomia em abandono das repressões. A conversa é séria, é de adulto para adulto. É luta por independência social.


A voz foi o testemunho desta evolução. Nina Simone resolveu lutar por direitos usando sua voz como veículo. E cresceu, mesmo sendo adulta.

Cresceu ao dar voz as dores, as injustiças, as opressões, as repressões, ao escárnio branco ao negro, às explorações. 

É por isso que milhões de pessoas negras clamam pelo direito de não serem subjugadas, pelo espaço digno de vida, pelo fim da exploração. Por quererem seguir em autonomia com a mesma liberdade do branco. De deixarem de ser infantilizadas, como eternos coitados. A voz dos negros busca tons graves. Busca afastar qualquer tipo de opressão e dar voz a toda repressão inconsciente.

É pelo direito do constructo do sujeito autônomo, como qualquer pessoa merece. É por não aceitar mais ser visto como alguém subordinável. Esta foi Nina Simone com uma música e com sua voz. Este é o povo negro, em sua luta diária.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Essa noite eu não dormi

Essa noite eu não dormi. A cama era grande em espaço e pequena para o meu incomodo. Não era o problema da cama. 

Relaxar não foi possível. Não foi o crédito que minha mente me dava. Naquele momento a ansiedade emanava de qualquer dos espaços. Todos os poros da pele purgavam constrangimento. O travesseiro perdia o seu formato, perdia sua necessidade. Estava reto demais para tantos pensamentos, estava afundado, perdia sua função.

Não era nem a cama, nem o travesseiro. Talvez a colcha, porém nem ela. Essa noite eu não dormi por que eu percebi que estava coberto por pensamentos alheios certeiros. Não estava protegido. Não estava aquecido, a cholcha era inútil. Não era a colcha.

Essa noite eu não dormi de angústia. De palavra não dita, de desprazer, de nojo. 

O possível novo me fez em mágoa. Mágoa de acreditar que alguns anos de luta por direitos podem virar pó. Eu estava coberto por pó. Era minha cama. Pó frio por tanto sentimento de ódio. De solução fácil, de morte e aversão, pó que gruda na pele. Na melanina, na sexualidade, no trabalhador, no indígena, em qualquer pessoa. Qualquer pessoa. Pó que num simples sopro, suja. Difícil de tirar, fácil de assoprar. 

Essa noite eu não dormi tentando entender porque  o frio que me partia o coração não vinha da janela. Vinha de palavras. De futuros atos violentos contra os direitos adquiridos. Era frio do passado, que quer completar o futuro.

Essa noite eu não consegui dormir. Minha cama não era cama. Não tinha travesseiro. Não tinha colcha, não tinha nada. Não era noite pra dormir. 

Essa noite a História virou literalmente passado. Virou propensão a repetir algo que não queríamos. Essa noite eu não dormi pois eu não vivi os momentos de tortura, mas aquilo que está incrustado em minha mente, de páginas e páginas de livros e estudos históricos de dor podem ganhar força. 

Essa noite eu não dormi por que a fantasia alheia de possíveis prosperidades mediante o tolhimento da liberdade, de cruzes suásticas que se levantam em meio ao silêncio dessa noite, pode virar realidade. O retrocesso é possível. A dor do outro pouco importa para aquele que esbraveja. Vira prazer - sorriso psicopata. Isso me tirou o sono. 

Fantasia essa noite foi palavra que pareceu muito a palavra fantasma.

Essa noite eu não dormi. Fui assombrado por fantasma disfarçado de bondade e pátria.
Fantasma que acordou e não quer mais voltar pro túmulo.

Não fui o único a ter medo de fantasma.
Essa noite muita gente não dormiu.

sábado, 19 de maio de 2018

Quando o negro entra

Quando o negro entra no cinema em um filme da Marvel, muitas pessoas estranham. Super-herois todos negros, a cultura africana sendo ressaltada? Ouvi de algumas pessoas que eles estavam se achando. Que não precisaria de nada disso.

Quando o negro entra na capela de Windsor para fazer um sermão, entra para tocar com seu violoncelo algumas obras clássicas, e cantar Stand by me em coral no casamento real ocorrido na Inglaterra, nem todos se permitiram a virar a cabeça para ouvir uma interpretação belíssima de uma canção de John Lennon. Antes a pose da pompa que a circunstância proporcionava, não é mesmo? E pra que pensar na pompa quando o Príncipe Charles lia qualquer coisa em silêncio durante a canção?

Quando o negro entra
no elevador, tenha certeza que alguma senhorinha em algum lugar deste redondo mundo ainda apertará contra o seu peito a bolsa cheia de riquezas. A que se remeteria o pensamento desta senhora, quando o jovem negro que ali estava, seguia para seu trabalho?

Quando o negro entra na tela de um cinema, reacende-se ao longo de toda sociedade a possibilidade de verbalizar todos os pensamentos reprimidos a respeito da diferença: isso se chama preconceito. É o branco que sai de cena, é o negro que ganha destaque. O branco é a criança que gosta de ser constantemente mimada e permanece regredida. Quando o branco sai de cena, ele faz birra, nomeia de macaco, nomeia pejorativamente. 

Quando o negro entra em uma capela inglesa, diante de um público seleto, percebe que entre eles há a história de perseguições e comandos. Que ali, aqueles brancos todos, souberam o que era segregar na África, sabem o que foi e o que fizeram no Zimbábue, na Nigéria. souberam que os negros que fugiam das perseguições da década de 60 do século XX dos Estados Unidos para a Inglaterra devido a série de perseguições que ocorriam pela luta dos direitos iguais, eram tratados com segregação e ataques em terras da rainha fofa e  idosa - a mesma que segurou em seu reino o cetro do Apartheid na África do Sul.

Quando o negro percebe que há alguém que o teme, observa a história viva da segregação promovida pela sociedade brasileira ao longo dos tempos. Que se julga libertadora de escravos mas apenas criou um documento e não promoveu nada para que os ex-escravos pudessem seguir em igualdade em sociedade.  Aliás, deu brecha para que eles fossem afastados e segregados: duvidemos por favor que a lei áurea tenha modificado o pensamento dos escravocratas, pois, com certeza a escravidão ficou viva inconscientemente. E conscientemente, pois basta observarmos um pouco na mídia que o facebook virou o lixão pra recolher as asneiras de um uma parcela da população que deixou seu silêncio para ganhar notoriedade em posts e comentários preconceituosos.

Quando o negro entrou no cinema como heroi, promoveu uma bilheteria maior que a do premiado Titanic - promoveu a força do povo negro que se sentou na plateia onde quer que esse filme tenha passado. Quando o negro entrou na capela de Windsor, rompeu com tradições e incomodou a branca sociedade real, ainda preconceituosa: quando os negros participaram tanto em um evento real em toda a história inglesa? Lá estivem eles, representando lutas e resistências. Quando o negro entrou no elevador, entrou para trabalhar, para seguir em frente, para tentar passar mais um dia como qualquer outra pessoa, rompendo as barreiras históricas que muito brasileiro possui mas se nega a aceitar.


A humanidade ainda não entendeu o que é ser humano. Não entendeu que toda a História envolve repressores e reprimidos. E não consegue ainda se colocar na posição de repressor, não quer admitir. Mas coloca com maestria qualquer negro na posição de reprimido.

Quando o negro aparece numa tela de cinema, quando o negro entra na capela de Windsor, quando o negro entra no elevador, mostra a força que historicamente, brancos insistiam em reprimir. E as telas de cinemas, capelas inglesas e elevadores são a prova concreta de que os brancos, felizmente, falharam.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Seriguela

É árvore de infância. Exige espaço - não exclusividade. É que os galhos exigem espaço, o tronco é baixo, dá pra subir no pé, sem qualquer problema. Dá pra se pendurar nos galhos, qualquer um alcança.  

Qualquer pessoa, qualquer coisa. É baixo mesmo, a seriguela não é árvore de crescer pra mais de metro. É de chão mesmo. Sorte nossa: fica mais fácil de colher os frutos.

Não são de todo doce, tem gosto bom. Alguns apreciam a fruta, outros a árvore, muitos o todo. Alguns querem que seja uma outra árvore.

Plantara a muda na frente de uma casa, em uma rua bem movimentada da cidade. Conseguiu espaço e a árvore em alguns anos conseguiu o que precisava: Espaço. Espalhou galhos para todos os cantos, ultrapassou a calçada, chegou ao asfalto.

Não cabia carro embaixo. Nem moto. Mas cabia gente, que quisesse no final dum ano ou início dum outro apanhar fruta. Era moleque, era adulto, era o que fosse. Estavam lá. Em semanas seus galhos estariam nus, sem frutos.

O dono da casa resolveu modificar a árvore: cortou todos os galhos que dão pra rua. Assim carro e moto poderiam estacionar ali. Não durou muito: passou um ano e os galhos voltaram a florescer e a cair de frutos. A árvore resolveu ser novamente mais forte.

Não satisfeito, pelo segundo ano consecutivo, os galhos foram podados. Só que dessa vez foram cortados de tal maneira que nenhum galho baixo pudesse ficar. Só uma coroa de galhos que estavam voltados pra cima. Nem esperou o amadurecer dos frutos. Tudo no chão, tudo pra abrir espaço pros automóveis.

E abriu. Por 10 meses o espaço ficou bem aberto. A seriguela não parecia pé de seriguela. Parecia outra árvore. Não era mais ela.

Mas tem dois meses, ela floresceu. Os galhos superiores, com flores. Não se alcança fácil, nem dá pra subir. Esse mês ela frutificou. 

Os galhos de cima estão começando a ceder com o peso. O pé de seriguela tem que ser ele mesmo.