domingo, 11 de outubro de 2015

No tempo da carroça

No tempo da carroça, era ela quem carregava a produção do sítio. Milho, bicho, gente. Ia de um lado pra outro empurrada por um cavalo ou égua, na velocidade que aturava o animal. Seguia morro de terra acima, trilha empoeirada, cerca que acompanhava, seguia em frente.
No tempo da carroça, quando era necessário ir à cidade, não se corria. Não era possível. Ia conduzida por uma pessoa e pelo esforço do quadrúpede. Assim o que sobrava ao sujeito nada mais era do que observar o tempo, se pudesse, cobriria-se do sol e acompanhava-se uma longa prosa, que é pra botar o papo em dia. Era um tempo em que existia uma coisa chamada horizonte.
No tempo da carroça existia o horizonte: poderia contemplar-se o horizonte dos cafezais, o horizonte da terra longe, o horizonte dos telhados de barro. Via-se chegando aos poucos, vagarosamente. 
No tempo da carroça quando chovia tinha que correr pra baixo da árvore ou pedir ajuda pra um sitiante mais próximo. Quando parava, continuava-se pois tinha-se que chegar. Até o fim do dia.
No tempo da carroça o tempo era o sol. A luz que batia em cada uma das preguiçosas árvores, acabava também sendo a orientação pra que se pudesse seguir em frente. E quando chegasse, procurava-se água pro animal, um pedacinho de grama pra ruminar, descarregar e descansar. Um bom copo d'água fazia com que os ânimos se exaltassem. Uma sombra era o manjar da pele. Uma cadeira e uma conversa acertava-se tudo. Descansavam todos. 
No tempo da carroça o barulho dos cascos anunciava em distância que ao longe chegava um cavalo. Se houvesse rangidos, sabia-se também que ele vinha acompanhado da carroça. Quem poderia ser? Nesse tempo saía-se a ver quem lá chegava. Se não era ninguém do convívio, voltava-se aos afazeres normais.
No tempo da carroça poucas cousas eram vida: a água do pote de barro, a cadeira preguiçosa, a sombra da mangueira, o vento a indicar a chuva. Éramos felizes com tão pouco e tão muito. No tempo da carroça o tempo era outro. Era ouro. Era vivo e não concreto. Era vara de pescar e não geladeira. Era entender a mata e viver a mata, não o matar, o afogar da terra em longas estradas.
No tempo da carroça o mundo era lento. Mas era mundo, simples, mas mundo. Era vivo, era verde, cheirava a lenha do fogão. Tirava-se o suor da testa ao arrancar o chapéu, um sorriso era a satisfação pessoal. A felicidade era fruto da sinceridade. A carranca dos rostos também. Ninguém era obrigado a ser feliz eternamente: o cavalo se cansava tanto quanto o seu dono emburrava pelo calor. E isso era permitido.
No tempo da carroça permitia-se viver, reclamava-se pouco. No tempo da carroça uma carta demorava a chegar, sendo suficiente para chorar-se ou alegrar-se de monte. Esperava-se, a ansiedade não era patológica, não era destrutiva: era gostosa, era misteriosa. 
No tempo da carroça o vizinho era gente. A gente era gente, não era aparelho eletrônico. Seguia-se simples, humano, em frente. Até o cavalo cansar-se e descansar no paiol, até o dono da carroça relaxar, dando um humano boa noite a família, cujo único barulho era dos noturnos animais vivos e existentes, e não de mensagens recém chegadas, recebidas, lidas e confirmadas, como se nada fossem.