quarta-feira, 27 de julho de 2016

Dial

Primeiro ligava-se o aparelho. Esperava-se esquentar a válvula, o que não demorava. Ah, demorava sim. Eram segundos de atenção e susto: se o volume estivesse alto, todos ouviriam no pulo.

Esquentado o rádio, lá ia seu Tião como todo mundo o apelidara. Sebastião era longo demais, mais rápido era Tião. Mais atencioso e tenso.

Eram tempos complicados: ai daquele que desse um sinalzinho sequer de vermelhidão em casa - era motivo do Dops encostar nas portas. Eram tempos de um Estado Novo.

A Rádio era de Moscou. Rádio comunista: informações diretas do Kremlin. Stálin representava a nação. Enviavam informações mundo afora. Para o Brasil, o horário era a noite. E baixinho que não é pra todo mundo ouvir.

Tião tinha que ter calma. Sentava-se sorrateiramente na frente do rádio, abaixava o volume e tirava da rádio nacional. Lembro que ele corria pra números diferentes dos números do Brasil. A chiadeira era constante. Zunidos subiam e desciam, engrossavam e afinavam. Agudos e graves, precisos como agulhas.

Era momento de silenciar. O número era justo, mas não o que o rádio oferecia. Tião aproximava o ouvido dos sons do rádio, era certeiro: primeiro uma chiadeira alta, aguda, depois um silêncio. Era o nosso prelúdio. O polegar e o indicador agiam como uma navalha mais que milimétrica. Movia-se sem mover. Uma virada diferente por questão de uma risada e lá se ia o canal.

O silêncio era o anúncio do informativo: "Rádio de Moscou!" e ali começavam as informações, sempre com uma breve chamada do Hino da Internacional. Era misterioso. Era fantástico. Era amedrontador. Meus sete anos em arrepios noturnos. Era monumental.

Nos chamava sem que entendêssemos de comunismo ou de aliados. De guerra lembrávamos, nosso vizinho tinha ido e morrido. Mas de governo russo? Queríamos a tensão do baixar os volumes. O suor frio que conseguir a estação, de compreender chiados imprecisos. De captar e esperar. Conseguir. Tião conseguia. Seus dedos giravam magias precisas... como uma nota difícil de ser alcançada no violino. Conseguia.

O giro era incerto, mas preciso. O ouvido girava com os dedos. Os olhos não largavam os números... estava entre dois, onde? Dependia. E se alcançava. Tião respirava fundo quando alcançava o silêncio. Aguardava a chamada como se conquistasse o território alemão no toque de um dedo. E conquistava. Aquela precisão treinada e tênue era digna de espião. Um duplo espião: De dia "Rádio Nacional", de noite, as penumbras das comunas soviéticas.

Um espião que sofrera com o tempo, sucumbira as dores cardíacas. Um rádio que só ouvia as notícias da velha "Nacional". Com o tempo, nem Tião nem rádio.

São botões, de controle remoto. Na caixa televisão. Consigo hoje colocar em qualquer canal estrangeiro. Qualquer língua. Não tem mais graça.

Não há o que se procurar, a imprecisão era precisa. A tensão era vívida. Os dedos não procuram mais, não erram. Não há  aquela perfeição que só o humano Tião era capaz. Era dele a batuta do silêncio dos dedos. Do sorriso trêmulo. Do meu não entender dos vermelhos. Do baixo volume de sua bravura. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

De todos os tempos

Ju é descolada. É esperta. Prefere as melhores Baladas.

Ju organiza todas as melhores festas. Melhores amigos sempre procuram a Ju. A Ju é um exemplo a todos os amigos. Aliás, quem não está com a Ju, está fora do que há de Melhor.

Espera-se que a Ju seja bem resolvida consigo mesmo, que seja uma mulher de atitude, como se viesse de sua própria natureza. Veio do berço. Ego bem estruturado, superego e id controlados. Seus pais eram de atitude. Perfeitos.

Ju tem o melhor apartamento.  Mora em torno de poesias e versos. Violões e músicas, melodias e cânticos. Discos antigos, autores inovadores. Saraus. Reflexões.

Ju recebe milhares de juras de amor. Ju é o centro das atenções. Ju não tem tempo livre: sempre a procuram, sempre estão fazendo alguma coisa divertida. Ju pede paz quando pode, mas é impossível. Ju é muito, muito requisitada. Ju está ficando cansada, apesar de um Snapchat, facebook e instagram bem atualizados. Descolados.

Ju é a melhor Ju de todos os tempos. É cérebro, é sentimento, é emoção.

Todos as veem como uma detentora de um cetro. É poderosa.

A melhor Ju de todos os tempos não tem nada disso: ela tem um celular. Ela não é nada disso: se acabar a bateria do celular, Não há Ju.