domingo, 16 de abril de 2017

A rumba de Saraghina

Fazer um filme demanda tempo e paciência: um bom enredo, um elenco e uma direção significativa. Enredo? Esse foi o problema apresentado pelo filme 8 e 1/2, de Federico Fellini. Guido é um personagem que passa por um sério problema: escrever um roteiro de um filme. Para tanto, todas as suas paixões e desejos acabam aparecendo e virando motivos de lembrança - amalgamam-se em vários momentos, enquanto o fraquejar do protagonista é sentido a cada momento. Por que não um dos seus momentos de torpor não poderia ser sua adolescência?


Fellini teve a feliz ideia de fazer com que em uma das lembranças de Guido, houvesse um momento erotizado ( se comparado com os dias de hoje, é uma cena leve): A famosa cena da Rumba de Saraghina.



Neste momento, um grupo de jovens saem de um internato até a praia onde pagam para que Saraghina dance. Numa dança que descrevo como exótica, Saraghina encanta cada um dos meninos com um gingado peculiar e olhares misteriosos e penetrantes. O jogo de movimento e zoons realçam cada passo dessa dança.

Uma elaboração simples: uma mulher que sai de um bunker emerge para a dança: limpa seu rosto para ganhar vida em passos arenosos, em olhares felinos. Quais foram os efeitos especiais? A maquiagem? O jogo dos olhos? A areia chutada pela dançarina?

Segundo Hugh Gilmore em sua postagem acerca da descoberta de quem foi a misteriosa dançarina, Fellini a descobriu quando andava na rua. Aliás, curiosamente, a dançarina era uma cantora de ópera que foi convidada pessoalmente por Fellini para fazer o teste para o filme. Em outras partes do filme, Saraghina ganha voz e toma outras atitudes, porém a cena central são os 3 minutos de filme na beira da praia.

Uma cantora que resolve dançar. Uma cena que exigiu nove pessoas atuando. Percebe-se que não foi uma cena de milhares de câmeras; antes de qualquer coisa, uma cena com uma fotografia esplêndida. Maquiagem inigualável. Olhos penetrantes, olhares certeiros.
Não precisou de muito pra demonstrar como uma mulher enigmática conduziu ao êxtase os jovens estudantes. E tudo muito simples.

Saraghina hipnotiza os garotos no longa metragem e os cinéfilos da contemporaneidade: uma obra prima do cinema.

A marca de Fellini não eram os complexos efeitos especiais. Em seus filmes, a rudez das gravações eram perceptíveis a todo momento - e é ali onde vivia o requinte.

Numa rumba de três minutos, renderam quadris, olhos, pulos e tapas. Em preto e branco. Nove atores, numa praia ordinária e suja. Pode parecer muito elogio para uma cena só, mas vivemos um momento da cinematografia mundial em que cenas assim dificilmente poderão ser imitadas. Onde a simplicidade é motivo de vergonha e pouca atenção. Eddra Gale ficou imortalizada por uma simples e amadora dança. Federico Fellini, como um dos maiores cineastas do século XX, só premiado com o Óscar nos últimos anos de sua vida, tem uma série de filmes aclamados pelos cinéfilos mundo afora. Poucos ganham esse espaço. Fellini hoje é, em muitos momentos, sinônimo de intelectualidade cinematográfica.

Do simples emerge o extraordinário.