quinta-feira, 23 de junho de 2016

Dós

Poucos dias para a apresentação. Partitura amassada: piano de teclas amarelas. As pretas apresentam uma pintura rachada, as do centro nem mais tinta possuem. Ressoam notas antigas, ressoam o esforço de um velho pianista.

"Dó, dó, dó... não, errei". Havia persistência. Havia foco: a apresentação.

O terno já estava separado. O piano continuava velho. Os dedos trêmulos. Insistia em não errar a nota: tocava tudo de novo. Intensamente, sentia-se que se sentia a música: fluía. até a parte fatídica. Maldito conjunto de "dós": não soam bem.

Volta tudo: os pés cansam-se nos pedais, mas não há outra tentativa: tenta-se. Até chegar nos "dós". Eles não fazem parte da letra. Não tem o porquê de estarem lá. Não fazem falta: deixam feia a música. "Dós" que machucam: não contemplam a beleza. Acabam com a melodia. Acabam com toda a veludez e profusão da música.

"Dós" que não tem significado: estão lá como uma folha velha numa árvore: melhor se caíssem, nada mais fariam pela árvore.

Janelas velhas, cortinas tão novas quanto as janelas. Uma casa escura, móveis antigos. Até parece uma casa a luz de velas, mas já havia a lâmpada fluorescente naquele lugar.
Velhos chinelos. Velhas panelas.

Dia seguinte, senta-se novamente: um suor escorre pela coluna... os "dós" chegarão. Deixa fluir. Os dedos não querem ir, mas não há volta... os "dós". E... foram tocados. A música continuou, o pensamento fluía como quem não concordasse, mas quem somos nós para discordar de clássicos músicos?

Ao terminar a música, com toda intensidade possível, fora interrompido o silêncio final por um aplauso. Era um único sujeito: pro lado de fora dos portões, pro lado de fora das cortinas, pro lado de fora da janela.

Aplaudia, gritava, berrava: o pianista não entendia. Correu pra janela, arrastando os chinelos no taco de madeira. Olhava, puxando a cortina para o lado. Um pouco apenas.

Era um homem: uma pessoa qualquer, um transeunte, parado. Aplaudia. Parara naquele momento: observara talvez os vinte minutos pelos quais passava a música. Parecia um bobo, pois aplaudia solitariamente para uma casa. Um gesto aleatório.

E foi embora. Nunca mais se viu tal figura. Nunca mais se ouviu os aplausos. Os "dós" tocaram, mesmo sendo uma nota boba. Os aplausos não voltaram.

O pianista olhara para suas chinelas. Tiras fétidas de couro gasto. Poderiam ser outras.

domingo, 12 de junho de 2016

Ninho

O barulho de serras, máquinas: começa às oito. Mas os pássaros não tem relógio. Os pássaros seguem a luz. E seguem suas necessidades.

Ia o bem-te-vi na sua procura constante por pequenos galhos. É época de procriação, sua companheira está pra botar. Segue o bem-te-vi a procurar pequenos galhos. Canta pra todo mundo ouvir "to aqui! não me atrapalha"! Seguia procurando, olhar atento.

Chegou bem pertinho de um galpão. Uma antiga serralheria. Nunca fora ali, tinha medo do barulho, mas não custaria dar uma espiada por lá. Desceu: O barulho era intenso. Marteladas e faíscas por todo o canto. Um cheiro esquisito: nada natural.

No canto de uma máquina a girar, o bem-te-vi viu um curioso monte. Uma montanha de fiapos de metal. Nunca tinha visto aquilo, era brilhante, era um amontoado. tinha cara de ninho. Podia fazer ninho. Bicou e pegou um fiapo pro ninho.

Subiu. foi até á árvore escolhida pelo casal e pôs o primeiro pedaço. Ficou até mole de início, mas depois deu certo parou onde precisava parar. e seguiu adiante. Ia e voltava na árvore, Ia e voltava no monte metálico. Montava.

Depois de alguns dias, a façanha estava completa: um ninho cinza brilhante, cinza metal, cinza ninho. Apesar de sua fêmea nunca ter visto um design daquele, achou criativo.

Sentou. Sentou e de imediato deu um salto: fora pinicada. Havia partes pontiagudas, havia partes cortantes. Se assustara: voou imediatamente, cantou alto "não dá aqui não! aqui não!". O macho mas do que rapidamente, tentou se justificar, pensou rápido. "A paina da paineira. É época: é macia. Vai resolver." E voou com painas até seu ninho. Bateu as asas até a sua esposa, mostrava seu pedido de desculpas.
Afofou: ficou confortável. Era como se sentar numa cama de pregos, coberta por um manto. Dava pra sentar. Estava agradável.

E eclodiu o singelo ovo. Uma cabecinha muito se mexia e muito atentava a mãe que ali estava. O novo chegara e precisava ser alimentado. Voam os pais a caça de comida. Cansa o filhote a se debater. 

Uma chuva forte atrapalhava o voo: ficava difícil assim continuar voando. Era melhor dar uma pausa. Era melhor pararem um pouco. Voltar pro ninho era sábio: A chuva também atingia o filhote.

A água afundara a paina. O metal se revelou improrrogável a cria.