sexta-feira, 21 de maio de 2010

Arquivo em processo de morte

Em uma não muito pacata cidade do interior de São Paulo, resolvi um dia fazer uma visita a um arquivo histórico municipal. Não sabia eu, mas o bendito ficava no interior do paço municipal.

Fui lá visitar tal arquivo. Me assustei com o tamanho, pois por uma cidade tão velha, um arquivo com menos de 15 metros quadrados seria deveras disperdício ou ausência de necessitaade de recolhimento de documentos.

Não tinha percebido que além do pequeno arquivo local, lá estava sentado um senhor, a folhear uma revista, como quem ali está a esperar alguém.

E me espantei quando reparei que ele era o atendente - ele estava literalmente esperando que alguém ali chegasse e utilizasse de sua bondade historiográfica. Obviamente lá estava ele com outra pessoa, para auxiliar nas pesquisas. Dar o direcionamento e quem sabe servir um cafezinho.

Ao entrar, já me indicaram a conversa com aquele senhor - ele saberia tudo o que eu precisava. Achei muito legal, e de fato aquele senhor sabia tudo. Escrevia alguns livrestos de história local, com aquele velho ar positivista dos prefeitos e grandes personalidades.

Uma prosa um tanto quanto agradável, diria eu sobre o que aquele senhor poderia me oferecer. Trazia detalhes sobre a fundação da cidade a até mesmo sobre os antigos povos daquela região - trazia detalhes sobre os indígenas. E sobre os primeiros moradores, as fazendas, costumes. "É este o assunto? A menina vai pegar para você tal e tal livro. Leia. Você vai gostar. Aliás, eu vou autografar um para você."

Conversando com a secretária do arquivo, ela dizia que aquele senhor era extremamente solicitado por todos que pesquisavam o lugar. Muitas e muitas entrevistas ele dava justamente pela quantidade de informações que ele tinha para dar. Não que ele fosse uma celebridade, mas era um dos poucos que estava carregando o fardo de preservar a história de sua cidade, aplicando metodologias próprias e encerrando em sua mente e em suas palavras a história verdadeira e concreta, como toda boa história local, sem aquelas rigorosidades teóricas.

Aquilo me deixou feliz por ver o empenho de um velho senhor em uma velha situação - preservar a História. Me deixou perplexo por um outro lado, pois aquele velho arquivo estava fadado a um triste destino.

Somos seres humanos. E morremos. Obviamente não é diferente para aquele senhor, com suas xícaras, seus contos e vivências. O Arquivo era ele, por isso que era tão pequeno o espaço. Todos que iriam pesquisar sobre a história da cidade passariam pelo seu crivo, e não pelo crivo do próprio arquivo - ali estão tais e tais coisas - e a secretária apenas levanta-se para obedecer ordens, tirar xerox dos documentos indicados e servir café. Os documentos teriam voz? Por que não entrevistar aquele senhor que tem todo o conhecimento?

Aquilo me deixou triste, por ver que em uma cidade como aquela, com tantas mentes universitárias, e até mesmo com um curso de arquivologia, o sistema aplicado estava fadado a passar pelos olhares de um velho senhor, conhecedor da História daquela cidade.

Ele era a História em si, enquanto que o arquivo era o registro físico daquilo que ele não tem como guardar na mente - é a representação documental dos seus pontos de vistas, de seus resquícios pessoas, e do comando de uma história - de prefeitos e celebridades.

Sempre acreditei que o arquivo em si deveria ter uma vida própria, em que funcionários fariam fluir todo o seu conhecimento por meio de pesquisas pessoais para assuntos das mais diversas opiniões. Ledo engano para aquele arquivo - ele era o dono da voz e da vez. E a vez está muito próxima a passar por um destino desconhecido, em que não haveriam mais indicativos pessoais, o conteúdo daquele arquivo poderia ser modificado e tudo que um dia sustentou-se pelas costas e pelo historicismo local daquele velho indivíduo, deixaria de existir. Seria levado para o túmulo.

Pela primeira vez na minha vida, vi um arquivo em falecimento - morrendo aos poucos, sendo explorado por um único ponto de vista, por algo incrivelmente assustador - a história de uma velha cidade fadada ao esquecimento. Pela primeira vez, um arquivo sem vida própria, carregado por um guindaste com cabos prestes a se romper.

Um comentário:

  1. Tilico, seus textos são sempre bons. O que acha de conversarmos com algumas organizações que conhecemos para fazer algo?
    VLZS

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