- Um, dois, me ouve Juca? Um, dois...
Assim ia Maria Eduarda, botas novas e e roupa cara. E seu câmera a acompanhar. Ali aconteceria a folia de Santo Reis. Aconteceria ou acontecerá, é um dia antes do Santo Reis. Mas a produção entrou em contato com o chefe dos tocadores para que fizessem uma mostra de como era a festa um dia antes, devido a agenda apertada, e que isso deveria se passar no programa vespertino no dia seguinte, ainda. O chefe aceitou e avisou um por um. Rumo a cada uma das casas, pediu a colaboração de membro a membro.
É dia de glória, é dia de discórdia. Lá foram os foliões todos vestidos. Chamaram as mães, chamaram a parentaiada, chamaram os vizinhos, os animais. A poeira já ia se avolumando: o povo ia chegando cada vez mais.
Maria eduarda já estava rodeada. Repleta de gente. Curiosa, essa gente nunca vira uma câmera de perto. Televisão sim, esse que é o zóio dozoutro, todo mundo conhecia. Mas Maria Eduarda? Ao vivo?
Maria Eduarda estava lá pra registrar a folia de Santo Reis. Cobrir cada passo, cada um dos movimentos. O estandarte entrando nas casas, os foliões comendo e agradecendo os reis. Os aplausos, a fé, a paixão. Maria Eduarda estava com sua roupa impagável. Temia que a poeira manchasse sua roupa. Mas a poeira é inevitável.
-Vamos então pessoal?Um, dois e três! Hoje na folia de Santo Reis no interior de...
Lá começou Maria Eduarda. Mais que rapidamente começou todos os foliões uma cantiga. Uma reza-cantiga. Um louvor, do século XIX. Uma história. Uma tradição, Todos pulavam empenhados em representar forçosamente o santo. Cada gota de suor era equivalente a um pecado a menos. Cada gota do penado suor era o mundo a ser ganhado. Mas o casaco e Maria Eduarda, o medo da poeira estava ainda grande.
Entraram no total em 5 casas. Fazem o bairro todo, daria na verdade mais do que isso. Mas continuavam, era em rede nacional. Pulavam, olhavam pra Juca e pra câmera. Pulavam. Levantavam poeira-alegria. Afastavam o medo. Cantavam. Comiam e ajoelhavam. Oravam. Os santos todos ouviam. Cantavam.
Os dedos tremulavam por entre as cordas, rompiam o alvoroço. Mulheres gritavam salves, rojões espalhavam o aviso. Santo Reis tá forte! Santo Reis trouxe presentes e a presença de um Deus que veio nos olhar! Ora! Ora! Comemora! Pula!
Completaram a jornada. Santo Reis se fez jorrar por entre os membros.
Maria Eduarda sorriu satisfeita, exceto pelo seu casaco. Juntara o microfone e o fio, entrou com Juca no carro oficial da emissora e partiu.
Levou o Santo Reis.
No dia seguinte, todos estavam cansados: esperavam pelo Santo Reis do seu vilarejo. Famílias se aglomeravam por entre as televisões de algumas casas. Quem saiu? Quem apareceu?
O chefe prometeu, ia começar o Santo Reis depois do programa vespertino. Todos animados: pelo programa.
Trinta segundos: esse foi o tempo de glória, ascensão das almas e louvor àqueles que vieram presentear a Jesus. Apareceu um rosto ou outro, a surpresa foi imensa. Aplaudiam: os donos dos televisores pediam silêncio. Imediatamente atendidos.
Trinta segundos: cada um catou seu chapéu e foi pra casa. A comemoração ocorreu. Santo Reis foi louvado.
Santo Reis trouxera alguns presentes: microfone, um casaco caro e uma câmera. Santo Reis levou-os de volta: os reis eram possessivos. Santo Reis levantou poeira um dia antes e pouco se importou com tudo isso: os trinta segundos promoveram Maria Eduarda e seu fino traje. Santo Reis virou ladrão?
Os trinta segundos trouxeram a preguiça para cada um dos cantores, violeiros, sanfoneiros e cozinheiras. Ano que vem quem sabe né? Esse ano já foi. Essa gente das capital sabe mesmo deixar lixo espalhado.